Instituto Jackson de Figueiredo
Seria completamente anacrônico dizer que os europeus conquistaram a América Latina, uma vez que, quando de sua chegada, nada havia por aqui que pudesse ser adequadamente designado por tal nome. Antes, a América Latina é o resultado da integração deste pedaço de chão à Civilização Católica, levada a cabo pelos reinos ibéricos. Pois bem, o maior tesouro que a América Latina herdou de seus pais, Espanha e Portugal, foi justamente a fé católica. Não apenas ela se tornou a matriz principal de sua cultura, fundamentando seu ethos, ordenando sua política e inspirando suas artes, entre outros aspectos, como cumpriu a função que lhe é mais própria: a de religar ‒ como verdadeira Religião que é ‒ o homem a Deus, seu Fim último.
Entretanto, a emancipação de nosso continente em relação àqueles pais católicos acabou por ser traumática em todas as partes, à medida que se deu sob a égide de princípios revolucionários, provenientes das nefastas ideologias que surgiram na Europa durante a modernidade. Mesmo no Brasil, que ainda conservou a união entre Igreja e Estado após a ruptura de seus laços com Portugal, houve episódios de perseguição como a chamada “questão religiosa”, fator decisivo para o solapamento daquela monarquia, já liberal e maçônica, abrindo-se espaço para o golpe militar de 1889, que instaurou a república laica.
Várias foram as revoluções que agitaram as novas nações latino-americanas desde então, mas a mais virulenta delas contra os próprios alicerces católicos do país, resultando num processo autofágico dos mais tristes e indignos da história, foi aquela que se deu durante o governo de Plutarco Elías Calles, no México da década de 1920.
Calles começou a perpetrar seus desmandos por via legislativa, modificando o Código Penal. O cerceamento da atuação religiosa, em consequência das leis iníquas por ele promulgadas, não poderia dar maior prejuízo senão ao catolicismo, mesmo que se não o citasse nominalmente nos textos oficiais, uma vez que esta era a religião de cerca de 90% da população mexicana à época. Para que se tenha uma idéia de seu autoritarismo, Calles proibiu no território do México a existência de escolas católicas, expulsou os padres estrangeiros e limitou o número dos restantes. A intenção era que o Estado controlasse inteiramente a atividade religiosa, o que não poderia ter outra consequência senão miná-la de todo.
Contra tamanha tirania, ergueu-se, no Brasil, a pena de Jackson de Figueiredo. Nosso patrono denunciou com tal força as arbitrariedades de Calles em sua coluna semanal da Gazeta de Notícias [1], que o embaixador do México de então, Ortiz Rubio, ameaçou romper relações com o Brasil, posto que Jackson ocupava um cargo no governo brasileiro, mas o incidente diplomático não o intimidou. Antes, pelo contrário, o sergipano respondeu de maneira cabal às falácias tanto de Ortiz Rubio, quanto às do próprio Calles em sua defesa, estas últimas publicadas num importante periódico carioca de então.
Desgraçadamente, porém, o desdobramento dos fatos no México acabou sendo trágico: a aplicação das leis promulgadas por Calles se deu por meio de métodos tão violentos que a população se viu obrigada a resistir e pegar em armas. Uma guerra civil, que ficaria conhecida como Guerra Cristera, ou Cristiada instalou-se no país entre 1926 e 1929. Para além dos mortos no conflito, houve verdadeiros martírios, como os do Pe. Francisco Vera, do advogado Anacleto Gonzáles Flores e mesmo do menino José Luís Sanchez del Río, de apenas 13 anos. Este último foi barbaramente torturado antes de morrer, enquanto bradava “¡Viva Cristo Rey!”.
Àquela época, não somente os bispos mexicanos, como a própria voz de Roma, onde reinava Pio XI, não tardou a se levantar. O homem que condenou todos os totalitarismos de seu tempo, a saber, o nazismo, o fascismo e o comunismo, logo em 1926 já protestava contra os abusos de Calles em textos como o da Encíclica Iniquis Afflictisque [2] e teve atuação decisiva para estancar o derramamento de sangue naquele que ainda hoje é segundo maior país católico do mundo.
Porém, os tempos agora são outros…
Passados noventa anos, novos revolucionários latino-americanos surgiram, mas sua sanha persecutória contra a Igreja permanece a mesma. O que já não se percebe é a mesma força de reação de outrora, quer entre os leigos em geral, quer entre os membros do alto clero católico. Em 2015, o Papa Francisco esteve em visita oficial à Bolívia, presidida pelo socialista Evo Morales. Durante a ocasião, o Papa aceitou como presente das mãos do próprio Morales uma cruz em forma de foice e martelo, símbolo daquele mesmo comunismo condenado por Pio XI. Uma verdadeira obra anti-artística, pois que blasfema em vez de ordenada ao Fim último do homem, tanto pior à medida que saída das mãos consagradas do Pe. Espinal, jesuíta como o Papa. Diante de boatos segundo os quais Francisco teria ficado desconfortável com aquela situação, o porta-voz do Vaticano à época, Pe. Frederico Lombardi, apressou-se em fazer aquilo que era sua maior especialidade: desmentir. Disse ele, na ocasião, que a obra não deveria ser encarada como ideologia, mas “como um sinal de diálogo muito aberto com todos para a liberação e o progresso da Bolívia”.
“Parece incrível!”, é o que muito provavelmente diria Jackson de Figueiredo diante de tamanha desfaçatez. Veremos, mais adiante, quais foram os frutos de tanto diálogo…
Se, por um lado, o Pe. Lombardi aposentou-se de seu ofício de porta-voz, por outro, Evo Morales e o Papa Francisco permanecerem em franca atividade. Este pretendeu nos últimos anos intermediar acordos políticos entre os Estados Unidos e Cuba e também entre o governo da Colômbia e os narco-guerrilheiros das FARC, iniciativas que ‒ Deo gratias! ‒ foram frustradas, respectivamente, pela eleição de Donald Trump como presidente dos EUA e pela rejeição do povo colombiano a qualquer acordo com terroristas.
Quanto a Morales, mais recentemente, fazendo jus ao fato de ter sido por duas vezes vencedor do Prêmio Muammar Gaddafi de Direitos Humanos ‒ no que deixou para trás grandes expoentes do “humanismo” gaddafiano, como Fidel Castro! ‒ parece ele querer seguir a mesma trilha percorrida por Calles [3], começando por modificar o Código Penal da Bolívia. Abriu-se espaço para o aborto, eutanásia, porte de drogas, imposição da ideologia de gênero e toda sorte de pautas anticatólicas típicas de partidos como o PT, grande apoiador de Morales, e, genericamente, da esquerda de nossos tempos.
Todavia, Morales não se satisfez apenas em implementar em seu país a pauta-padrão do “socialismo do século XXI”, para nos valermos de uma expressão cara a Hugo Chávez. Foi além: quis tornar crime o próprio múnus pastoral da Igreja, equiparando-o ao “recrutamento para conflitos armados” e tipificando-o como tráfico de pessoas! Contudo, examinemos em primeiro lugar a legislação boliviana anterior [4], de 2012, que tratava de tal modalidade criminosa:
ARTIGO 281 Bis. (TRÁFICO [5] DE PESSOAS).
I. Será sancionado com privação de liberdade de dez (10) a quinze (15) anos, quem por qualquer meio de engano, intimidação, abuso de poder, uso da força ou qualquer forma de coação, ameaças, abuso da situação de dependência ou vulnerabilidade da vítima, a concessão ou recepção de pagamentos por si ou por terceira pessoa realizar, induzir ou favorecer a captação, translado, transporte, privação de liberdade, acolhida ou recepção de pessoas dentro ou fora do território nacional, ainda que medie o consentimento da vítima, com qualquer dos seguintes fins:
[…]
12. Recrutamento de pessoas para sua participação em conflitos armados ou seitas religiosas.
Não há nada aí que se corrigir, ainda que já se possa antever um anticlericalismo, diga-se, “embrionário”, pelo qual se encontram unidos “conflitos armados” e “seitas religiosas” no mesmo parágrafo. Porém, perceba-se o ardil de Morales ao aprovar, em 2017, o novo Código Penal da Bolívia, no que diz respeito ao mesmo crime:
ARTIGO 88. (TRÁFICO DE PESSOAS).
I. Será sancionada com prisão de sete (7) a doze (12) anos e reparação econômica a pessoa que, por si ou por terceiros, capte, transporte, traslade, prive de liberdade, acolha ou receba pessoas com algum dos seguintes fins:
[…]
11. Recrutamento de pessoas para sua participação em conflitos armados ou em organizações religiosas ou de culto;
[…]
III. A sanção será agravada com prisão de nove (9) a catorze (14) anos, reparação econômica e, em seu caso, inabilitação, quando concorra alguma das seguentes circunstâncias:
1. Engano, intimidação, coação, ameaza, uso da força, abuso da situação de dependência, vulnerabilidade ou estado de necesidade da vítima;
2. Concessão ou recepção de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra;
Aqui as coisas mudam de figura completamente, pois o que antes era considerado como cerne da atividade de tráfico de pessoas (valer-se de engano, coação, uso da força, abuso de poder, etc.), torna-se, no novo texto, apenas agravante do tipo penal, que agora se define por atividades como o mero transporte, traslado, acolhimento ou recepção de pessoas, desde que para fins de “recrutamento em organizações religiosas ou de culto”, o que inclui a Igreja Católica, da qual 76% dos bolivianos são membros, segundo dados de 2013. A quem se visa atingir com isso senão à mesma Igreja? Estamos diante de um novo Calles. Entenda-se: se qualquer um transportar uma pessoa, mesmo sem coação, com o intuito de convertê-la a uma determinada religião, poderá responder por tráfico humano!
A Conferência Episcopal Boliviana já se manifestou sobre o assunto, afirmando que o artigo 88.I.11 do novo Código Penal “Implementa o delito de recrutamento com fins religiosos realizado por instâncias religiosas, cuja ambiguidade manifesta atenta claramente contra a liberdade religiosa”. Rumores indicam que a mão do Estado já ameaça as escolas privadas. Protestos têm sido feitos pelo país e reprimidos pela polícia de Morales, que chegou inclusive a invadir o Convento de San Francisco, em La Paz, para prender manifestantes. Enfim, uma escalada de violência se anuncia. Os ecos da Cristiada, ainda que ao longe, já se ouvem na Bolívia. Mas o primeiro Papa latino-americano, ao que parece, mesmo estando no vizinho Chile ainda não os ouviu…
E quanto a nós? Que podemos fazer?
Se hoje já não dispomos de ninguém à altura de Jackson de Figueiredo na imprensa brasileira e ‒ o que é muito mais lamentável ‒ de Pio XI na Santa Sé, o que praticamente nos resta é rezar à Virgem de Guadalupe, padroeira da América Latina, para que a união entre “organizações religiosas” e “conflitos armados” na Bolívia restrinja-se ao texto do desprezível Código Penal de Morales, a ser descartado, com toda sua imundície, na sarjeta da história, e não venha a dar-se na realidade.
Kyrie, eleison.
P.S.: Àqueles que eventualmente disserem que tudo isso não passa de alarmismo e exagero de nossa parte, nosso mais sincero desejo é de tais pessoas tenham razão.
[1] O Instituto Jackson de Figueiredo está reunindo tais artigos para dar a ele a forma de um livro inédito, a ser publicado ainda este ano.
[2] Encíclica cuja tradução em português figurará como apêndice do livro acima mencionado.
[3] Não somos os primeiros a traçar esse paralelo. Já em 2013 se via o espírito de Calles em Morales:
https://pt.aleteia.org/2013/08/01/bolivia-caminho-aberto-para-uma-igreja-que-substitua-a-catolica/
[4] Trata-se da Lei 263, de 31 de julho de 2012, que versa sobre o tráfico de pessoas. O trecho mencionado justamente altera o Códio Penal de então. Pode-se lê-la na íntegra a partir do link abaixo:
http://www.defensoria.gob.bo/archivos/Cartilla%20Trata%20y%20Trafico.pdf
[5] No texto original, em castelhano, figura o termo “TRATA”, o que acabou causando certa confusão entre os brasileiros, uma vez que significa “TRÁFICO” em vez de ser uma forma do verbo “TRATAR”.