Jackson de Figueiredo
Há sete anos mais ou menos publiquei n’”O Jornal”, do Rio um longo ensaio sobre a filosofia política de Charles Maurras, ensaio que, depois, sob o título de “Cartas a Camilo”, veio a fazer parte do volume “Afirmações”, da “Coleção Eduardo Prado”.
Naquele trabalho, após mostrar todas as feições simpáticas do movimento idealístico e prático da Action Française, não me esqueci, no entanto, de confessar algumas das minhas mais sérias apreensões em relação a ele.
Entretanto — dizia eu — Ch. Maurras, para quem a vida social obedece a leis, por conseguinte, a um princípio organizador essencialmente hierarquizante, usa de uma porção de sutilezas para provar que nenhuma oposição pode nascer entre a ordem religiosa e a ordem civil, o que só seria verdade numa sociedade como a da França, já de si mesma tradicionalmente católica e organizada, como é aspiração de seu grande filho.
De fato, a consequência dos princípios de Ch. Maurras seria a submissão de tudo à ordem civil.
A religião seria, dentro desta ordem, fator sempre útil, e às vezes essencial, mas poderia deixar de o ser.
É por isto que, contrariamente ao pensar da Igreja, ele não vacila em usar de frases como esta: “Il faut renverser la république PAR TOUS LES MOYENS”.
Ora, diz Descoqs, organizar a política sem ter em conta a moral e a religião e não reconhecer nestas senão um valor de fato, é pôr-se em oposição a toda a doutrina da Igreja. “La croyance informe tout l’être et pareillement le fait d’incredulité affecte l’homme tout entire” (Fidas).
Maurras esquece também que o católico vive em uma ordem sobrenatural e, como provou Fidas, Maurras faz a mais perigosa confusão entre a ordem natural e a sobrenatural.
A Igreja bem sabe que, “a razão tão somente, contanto que seja sã, pode discernir o bem do mal e verificar na natureza do homem uma desordem oposta à nativa bondade sonhada por Jean Jacques.
Assim, ela pode organizar a legislação, mas que seja humilde e não diga jamais ao dogma: Nada tenho a aproveitar do que me ensinas”.
O mal de que sofre a doutrina de Ch. Maurras é o de abandonar, às vezes, a natureza dos fatos, para verificar somente a lei que explica as ligações destes mesmos fatos, o que pode ser alguma vez motivo de submissão a sucessões passageiras de fatos maus em sua essência.
Como se vê, mentem os críticos que por incultura ou por má fé, aproveitando os últimos acontecimentos, me têm apresentado como discípulo de Maurras.
A verdade é que a obra deste sempre me interessou, como me interessam todas as repercussões modernas do pensamento de Joseph de Maistre, só havendo a mais no caso o fato de se tratar da mais completa obra de pensador político, do mais genial esforço filosófico nestes domínios, que conhecemos.
Muitas outras vezes, aliás, tive ocasião de confessar as minhas dúvidas sobre os benefícios da íntima aliança de elementos católicos a uma atividade política, assim como a dele, desprendida de qualquer compromisso de fé sobrenatural e perfeitamente definida.
Sabe-se agora, pelo menos nas suas linhas gerais, que há um conflito entre grandes Príncipes da Igreja francesa e o movimento da Action, e que a esse conflito a própria Santa Sé apôs um selo de gravidade a que católico algum pode ficar indiferente.
Mas é um fato, também, que ainda ninguém pode afirmar que do bojo dessa luta, tenha saído a completa condenação de Maurras e, por conseguinte, a positiva obrigação por parte dos católicos de lhe negarem a sua solidariedade, em qualquer terreno.
É por isto que leitura alguma pode ser tão útil, neste momento aos que se interessam pela questão, como a da brochura que Jacques Maritain, o grande e sereno espírito francês, que encarna o senso tomista contemporâneo acaba de publicar sob o título: UNE OPINION SUR CHARLES MAURRAS ET LE DEVOIR DES CATHOLIQUES.
Após justificar a sua incursão nesses domínios da política — demonstrando que a recente intervenção da Santa Sé impõe ao filósofo interpretar o sentido e o valor de tal intervenção — Maritain encara a questão em todos os seus aspectos.
Relativamente à pessoa de Maurras, são comoventes as suas palavras:
“Como não dizer logo a minha admiração por Maurras? Sua grandeza, a profunda força propulsora da sua atividade, é, antes do mais, conforme penso, o senso do bem comum da cidade. Um magnífico amor, uma lúcida paixão desse bem comum, eis o que em primeiro lugar nele me impressiona e faz com que o olhe como para um exemplo de virtude cívica, um desses verdadeiros republicanos, cujo tipo se formou nas pequeninas cidades da Grécia, ou nos municípios da Renascença.”
E, depois, visando propriamente o ser moral que se revela no doutrinário, se não esquece “a estranha impotência de Maurras para compreender que a natureza é ferida, para ver o grande mistério da introdução da morte pelo pecado e para esperar a redenção”, não se lhe afigura ousadia o afirmar que “entre essa disposição de alma e suas teorias políticas, só existe uma relação contingente”, o que o sabe o próprio Maurras e, mais de uma vez, o tem testemunhado.
“Seria irrazoável aliás — diz Maritain — querer tudo ligar num homem como em um tratado de geometria. Sei os textos que podemos impugnar em Maurras e que ferem cruelmente a nossa fé. Não há cristão que deseje passar uma espuma sobre eles. O próprio Maurras, no entanto, não faz depender deles toda a sua obra, e pode-se crer que eles exprimem o aspecto de seu pensamento a que ele está menos ligado”.
E Maritain pode-se dizer que resume todas as complexas dificuldades com que se deparam os católicos em face da obra de Maurras, nestas simples perguntas:
“O que me aflige em Maurras, deverá impedir-nos de conhecer o que Maurras diz de verdadeiro, o que nele se junta ao pensamento de um Joseph de Maistre ou de um Bossuet? E, depois, não sentimos nele, em relação à fé, alguma coisa a mais que a fria indiferença, um grave e ardente pesar, que não está longe de ser desejo? Quem sabe onde está Maurras a esta hora? Quem pode medir até que profundeza alcança, no segredo do coração, uma confissão como esta: ‘Que virá a ser do agnosticismo de Augusto Comte? A questão aí está. Da minha parte, eu ma proponho vinte vezes por dia?'”
Obra tão séria e sobre a qual é possível fazer perguntas desta ondem, demonstra-o Maritain, não pode ser completamente posta de lado pelos católicos, e o que S. S. Pio XI, na sua carta ao cardeal Andrieu, procurou acentuar é que “não se deve seguir cegamente os dirigentes da Action Française nas coisas que se relacionem com a fé e com a moral”.
É claro, diz Maritain, que essa distinção não é fácil de ser aplicada, desde que para o verdadeiro católico não há ramo de atividade, nem intelectual nem prática que, em última análise, não deva estar subordinada à fé.
Entretanto, o papel do filósofo — e é só este que pretende Maritain — é esforçar-se para que uma tal distinção possa ser feita em relação a Maurras, poupando-o de injustiças maiores e protegendo as almas, ao mesmo tempo, dos erros a que ele porventura as impila.
Da exposição que faz Maritain, da doutrina de Maurras, ressaltam logo duas verificações que não é possível esquecer, sem prejudicar totalmente qualquer juízo que se queira fazer sobre o conjunto da obra reacionária: 1ª, que Maurras, em razão mesmo do seu processo empírico, não se propõe descer de princípios a consequências, não se fixando na ordem da intenção mas, sim, na da execução; 2ª, que Maurras se coloca sempre do ponto de vista de que está em meio do erro, rodeado pelo erro, erro não só da parte dos que são governados mas, também, da parte dos que governam.
Daí a conclusão que indiretamente pode ser tirada das suas doutrinas: isto é, que ele não desconhece — senão por vantagem de método — os princípios, e, assim, quer alcançá-los pelo afastamento das consequências sociais advindas com o abandono deles.
Se ele lança mão, voluntariamente ou não, dessa vantagem, isto é outra questão, e que não interessa a quem quer seguir apenas o que ele prega, e não a lógica do seu processo interior, psicológico.
Esta é a parte mais bela da defesa que, a meu ver, fez Maritain, da obra e da ação de Maurras, pois tudo o mais o próprio chefe da Action já tem destruído, dos muitos erros que lhe atribuem os seus adversários.
Maritain, porém, ainda num ponto presta a Maurras serviço inestimável, e é quando procura indicar também quais os perigos a que se expõe o católico na intimidade com os doutrinadores da Action.
Na ordem do pensamento, tudo se resume em “naturalismo” político, encarada a Igreja somente nos bens que ela secundariamente dispensa, sem ter olhos para a sua dignidade essencial, sua função máxima e fim próprio, isto é, a vida sobrenatural.
Na ordem da ação, “crer quer a atividade política e exterior é para cada pessoa privada a principal e a mais urgente”, esquecendo assim “o primado absoluto das virtudes sobrenaturais e a atividade interior do conhecimento e do amor”.
Em resumo: “naturalismo” filosófico (que pode oferecer nuanças perigosas pela sua própria leveza) e consequente “naturalismo” prático.
Todavia, ainda observa Maritain, que os católicos podem alegar a situação histórica excepcional, em que eles foram forçados a adotar uma linha de conduta excepcional, que não fere a essência da sua fé.
É ou não uma defesa de Maurras o que oferece Maritain?
Quando não o seja, sê-lo-á, porém, indiscutivelmente, dos católicos que, até hoje, deram o seu apoio à Action.
Esperemos, pois, com serenidade, o que, em definitivo, decide a Santa Sé.
O que até agora temos podido saber, ainda não autoriza atitudes definitivas em relação à obra do grande reacionário.
Gazeta de Notícias, 26 de janeiro de 1927