Jackson de Figueiredo
Atravessamos um momento realmente feliz em relação às nossas aspirações de cultura, isto é, de saber harmônico e objetivação honesta. Basta imaginar o que, no domínio da cultura moral e afetiva apresenta um livro como o “Pai e Patrono“, de Moysés Marcondes; no da sensibilidade, da imaginação criadora, uma joia de arte como a “Festa Inquieta” de Andrade Muricy; no da crítica, melhor, no da avaliação vital e não somente intelectual (para usar a distinção bergsoniana) do pensamento contemporâneo, o que valem os “Estudos” de Tristão de Athayde. Poderia dar outros exemplos. Limito-me aos que mais particularmente me interessam.
A esta hora mesmo, porém, e já no domínio histórico – e a cultura histórica é como que a prova da existência de um dado povo – a esta hora mesmo, digo, acabamos de alcançar uma grande vitória intelectual com a publicação em volume dos profundos e sérios estudos do padre J. M. de Madureira sobre a “Liberdade dos Índios, A Companhia de Jesus, Sua Pedagogia e seus resultados.”
Junte-se a estas obras, uma que é de ontem, “A Igreja, a Reforma e a Civilização”, do padre Leonel Franca, esta, certamente, o mais alto e firme monumento de saber histórico e filosófico, até agora escrito em nossa língua, e avaliar-se – à extensão das nossas conquistas intelectuais, tanto mais para serem admiradas quanto é evidente que, por outro lado, atravessamos uma dolorosa fase de desordens morais, um aflitivo e desnorteante período de esterilidade política e social.
Não há de ser, porém, inútil esse esforço. E nem se trata de simples exercícios de razão discursiva, que se pudessem agitar no vácuo, ou num plano, puramente ideal, de estéreis verossimilhanças. Não. Sente-se que há um esforço da parte culta do país, para a organização do que se possa chamar uma cultura, no sentido em que Carlyle, Nietzsche, e mais modernamente Grierson e, até mesmo o nebuloso Chamberlain, a distinguiram do mero prurido de erudição, de saber inorgânico, “seco como poeira” ou simplesmente morto. Não, repito. Sente-se que todos esses homens trabalham sobre os tecidos vivos da Nação, estão em contato, em intimidade, unidos, fundidos, por assim dizer, com a nossa sensibilidade histórica, com a poesia moral da nossa vida coletiva, com o seu sentido universal e religioso, com todas as feições internas, mais profundas, enfim, do drama, da epopeia brasileira, dessa lenta mas admirável formação de uma grande raça histórica, a elevar-se, com a majestade de uma verdadeira Atlântida, do fundo da misteriosa fusão de tantas raças, de tantos fulgurantes heroísmos e de tantos obscuros martírios.
Esta obra do padre Madureira, por exemplo, só mesmo a mais repugnante má fé ou a ignorância mais cabal da nossa história, não terá a compreensão do seu enorme valor moral, desde que se pode afirmar, sem temor do menor exagero, que ela é, mesmo após as pesquisas de homens como Capistrano de Abreu, Teschauer e outros, e , principalmente, após os esforços coordenadores de Lúcio de Azevedo, em seus ensaios sobre Vieira, os Jesuítas no Grão Pará e o Marquês de Pombal, ela é, dizemos, não só a mais rica e mais completa coordenação de testemunhos do que foi a obra dos Jesuítas na América, mas também a mais séria tentativa de crítica histórica, já feita entre nós e em Portugal, dos seus métodos e processos educativos, em particular, e da sua atuação politicamente pedagógica no perturbante meio social do Brasil colônia.
Mas quando se sabe, que a visão filosófica de um historiador como Nabuco, impunha-se uma confissão como esta: “É de todo duvidoso que existisse a unidade brasileira sem a unidade da Companhia; a probabilidade é que não haveria Brasil, se, em vida de Loyola, Portugal não tivesse sido Província da Companhia”; quando se sabe que à indomável honestidade de um historiador como Capistrano de Abreu também se impunha esta afirmação de que “é um atrevimento escrever-se a história do Brasil antes de estar escrita história dos jesuítas” não só se compreende a impossibilidade de compreender-se a história do povo brasileiro sem o dado universal da fé católica, mas também que só é possível penetrar o sentido, a alma, o espírito da nossa tradição, se se conhece o sentido, a alma, o espírito da educação jesuítica, e é o caso de dizer: se se é capaz de os penetrar despido dos miseráveis preconceitos criados pela propaganda maçônico-liberal-revolucionária contra o “Ratio Studiorum”, isto é, contra o plano geral de atuação psicológica com que o gênio da Companhia de Jesus procurou reimprimir no mundo o senso da unidade espiritual, a aspiração a uma cultura orgânica, ordenada a formar homens realmente vivos, o eu que dizer, amantes de Deus e da ordem, e não só as inquietas e mórbidas vaidades de uma insensata medição de forças com as leis eternas da nossa condição no seio da natureza.
Leia-se agora na obra do Padre Madureira, a defesa filosófica, a defesa pedagógica e histórica da educação jesuítica (a mais documentada que já li até hoje) e compreender-se-á que só o que a Razão recusa, recusavam os jesuítas a essa mística da liberdade individualista, origem e fonte de todas as desgraças sociais do Ocidente.
Não há, pois, como duvidar que temos uma tradição intelectual mesmo porque, como tão incisivamente fazia observar Maurras, “o erro não pode constituir tradição”, e, se a temos, tudo ainda é possível esperar do Brasil dos nossos dias, quando o vemos, assim trabalhar no sentido de aprofundá-la, de alcançá-la, de reconquistá-la intelectualmente, derrubando o que em volta dela representa a espessa vegetação do ódio e da má fé, o que representa todo o esforço de caluniadores e cegos de espírito contra a obra do Cristianismo no mundo e, particularmente, na América.
Não estou aqui, é claro, fazendo a crítica da grande obra do emérito educador e historiógrafo que é o Padre Madureira.
Estou a dar parabéns ao Brasil. Estou a fazer simplesmente o que outros ainda farão com mais autoridade: informando os que amam a nossa história e a nossa gente do aparecimento de uma obra que os confirmará na justiça desse amor, e ainda os ajudará a amar mais esclarecida e serenamente.
Gazeta de Notícias, 2 de Novembro de 1927.