Jackson de Figueiredo
Da nossa literatura de caráter religioso não se pode dizer hoje que seja uma literatura pobre, pelo menos, em relação à nossa literatura em geral. Quase não há domínio das letras em que nós, católicos, não tenhamos atualmente um representante, e que saiba levar ao campo que escolheu a consciência de uma finalidade propriamente religiosa. E tanto é verdade o que estou a dizer que se reflete nas letras católicas, e do modo mais claro, toda e qualquer deficiência da nossa atividade criadora na ordem intelectual. Assim, o Brasil se apresenta como um país sem biografias. Raros tem sido, entre nós, os exemplos de amor aos nossos homens, aos tipos representativos do nosso passado, da nossa cultura, dos nossos esforços na paz ou na guerra. Cinco ou seis obras notáveis, se tanto, é o que, em nossas letras, representa a fortuna do gênero.
E a literatura definidamente católica não se poderá gabar de três, sendo que com valor literário positivo e real, talvez não possa apontar outra que não a “Vida de D. Viçoso”, escrito pelo próprio D. Silvério Gomes Pimenta, que nós, os de minha geração, nos acostumamos a chamar o velho Arcebispo de Mariana. Foi-lhe compensadora, porém, a sorte literária, pois ainda não decorreram dez anos após a sua morte e já merece dos seus contemporâneos uma homenagem tão rara entre nós.
De fato, acaba de vir à luz da publicidade uma alentada biografia do 1º arcebispo de Mariana, e escrita talvez pela pena que com mais títulos poderia pretender a honra de traçar-lhe o perfil de “sábio e de santo”: a de S. Ex.ª o Sr. D. Joaquim Silveira de Souza, 1º arcebispo de Diamantina.
A obra, editada por D. Helvécio Gomes de Oliveira, o atual arcebispo de Mariana, prova só por isto como o culto à memória daquele grande bispo se mantém fervido e eficiente no centro mesmo onde se desdobrou a sua apostólica atividade, e tendo como garantia da sua pureza, o amor, assim tão vivamente demonstrado, do nobre príncipe que o substituiu em tão glorioso trono da nossa Igreja.
Do autor desta biografia só conhecia, até agora, em livro, creio da sua mocidade, algumas páginas, cenas e paisagens da vida mineira, que me deixaram a impressão de ser o Sr. Joaquim Silvério um dos mais bem dotados entre os nossos escritores católicos: bom gosto, de sabor neoclássico, e muita vida, não raro, em seus quadros de amoroso da terra e do homem mineiros.
Nesta obra de agora, em que passo a passo acompanha o vulto do seu grande colega de episcopado, na sua formação intelectual e religiosa, na sua atividade de professor, de sacerdote e de bispo, admirável, glorioso rival de D. Viçoso, não só no ardor apostólico, mas também na segurança da ação e na capacidade de trabalho — carregando a mais uma soma de saber singular em nosso meio — se reafirma o mesmo pulso consciente de escritor, e, desta vez, com pena ainda mais aparada e discreta na grave função de aprofundar uma vida tão santamente dedicada às letras, em toda a esfera da vida cristã.
Não estou fazendo aqui a crítica da nova obra de D. Joaquim Silvério. Anuncio-a como posso, anuncio-a sobretudo, aos leitores católicos, que se devem orgulhar não só do biografado, mas também do biógrafo. Entretanto, para ser de todo sincero, devo dizer que, neste livro, ainda me agradam mais as páginas que relembram a frescura, o espontâneo das primeiras páginas que li do atual Arcebispo de Mariana. Sei que o assunto como que já de si modelava em austeridade e rigor a expressão literária, assim como já levava o autor da “Vida de D. Viçoso” a refletir, de modo tão claro, a sisuda, mas deliciosa maneira daquela “Vida do Arcebispo”, que Fr. Luiz parece deixado como modelo eterno à nossa língua.
E vale mesmo a pena percorrer estas quatrocentas belas páginas sobre a vida de Dom Silvério! Que exemplos de dedicação e de humildade! Que testemunhos de segurança doutrinária e firmeza de propósitos! Da sua ação como padre durante a chamada “Questão Religiosa” até a sua atitude no início da candidatura Bernardes, é sempre o mesmo cristianíssimo destemor, a mesma palavra tão cálida e vigorosa no seu espírito quão serena e equilibrada na sua expressão.
Mas fora longo recordar, em artigo de jornal, essas gloriosas horas da sua vida, aliás, toda ela, mesmo na sua atuação quotidiana, no terra a terra da luta de todos os dias, sempre dirigida para o céu, sempre dedicada ao bem das almas, sempre, por assim dizer, em função do bem público.
A página, esta, sim, de tanto movimento e de reconstituição tão detalhada, que D. Joaquim Silvério dedicou à sua agonia e morte, comoverá ainda aqueles que não tenham fé, mas conheçam de perto o que pode o sofrimento subtrair a uma criatura das suas energias interiores.
Os católicos que, este fim de ano, já tiveram a obra do Padre Madureira sobre a ação dos jesuítas no Brasil, têm mais este formoso livro a ler, espelho de grandes exemplos, como só a fé pode criar.
Estão, pois, de parabéns.
Gazeta de Notícias, 23 de Novembro de 1927.