Jackson de Figueiredo
O sacerdote liberal, não tendo mais nada que responder, disse somente que “até o nosso grande Veuillot foi forçado a fazer mais de uma vez o elogio da democracia”.
Não me ficava bem desmentir pura e simplesmente a quem me merecia tanto respeito, nem tinha, no momento, com que documentar o que eu dissesse, de modo que fosse a própria verdade dos fatos quem tomasse a si o desmentido…
Ei-lo, porém, com as próprias palavras do “nosso grande Veuillot” justificando-se, talvez, de acusação semelhante:
Quando falamos de um futuro da democracia, de uma República possível, de um povo investido de uma liberdade mais larga que a que até agora coube ao gênero humano, falamos desse povo vivo do Cristo vivo. Foi a esse povo que foi dito: Veritas liberabit vos.
Creio que não merece mais discussão este ponto. Não há criança, conhecedora do Catecismo, que não aprenda o que com isto quis dizer Louis Veuillot.
O que o meu nobre amigo talvez ignore são algumas definições republicanas desse céu aberto da aspiração liberal. O nosso comum amigo Fiuza Junior contava-me há dias que um dos nossos mais famosos homens de letras, e notável também pela sua historicidade republicana, lhe dera a seguinte definição da “nossa” democracia:
“Cachaça, catinga, e pornografia…”
Demasias de um amargo temperamento?
Não tenho opinião formada a respeito, mas pergunto somente ao nobre amigo se, quando se vê Chateau (e ainda há gente mais informe do que ele) quando se vê Chateau, profeta de democracia, não é para se ficar desconfiado?
A catinga de judeu não entra mesmo pelas narinas menos sensíveis?
Cachaça? E quem não sente que é ela a inspiradora dos maiores arroubos de alguns apóstolos do “nosso” liberalismo de alcouce?
Pornografia? E que outra linguagem se fala neste cenário de carnaval?
Mas dir-me-á o distinto amigo que há coisas mais sérias no augusto seio da República, o Partido Democrata, o Partido da Mocidade, etc…
Pensée…
Actions qui dorment…
Ah! Essas curiosas ideias políticas antes ficassem mesmo a dormir eternamente, porque é evidente que elas, sim, são ideias de gente adormecida há um século e a mover-se agora sonambulamente… Os bons, os veneráveis anciãos que concitam a nossa mocidade neste momento, fazem, positivamente, mais pena do que raiva a quem observe, com rigoroso objetivismo, os males atuais do Brasil…
Eles não serão os mentirosos profissionais da política militante. Mas ainda são piores do que isto: eles são o mentira viva mais inconsciente, deste ponto de vista que é a própria mentira o que, unicamente, os anima, a mentira da negação sacrílega, aquela que, de orgulho em orgulho, contrapondo-se ao senso hierárquico do mundo criado por Deus, reduziu o Governo dos homens a um mero jogo aritmético, em que ninguém crê, como é justo que ninguém, de fato, creia.
Oliveira Martins, que não falava da altura cristã a que subiu o “nosso grande Veuillot”, ainda assim não trepidava em dar, aos que o ouviam, esta admirável lição:
Nenhum sistema político se presta mais à tirania e à burla do que o sistema aritmético do governo das maiorias. Inorgânico. Ou se perde na confusão da anarquia, ou cai na paz da indiferença apática, ou numa corrupção sistemática, num processo de burlas e sofismas.
E nós sabemos o que tem sofrido a pátria do pobre pensador, após sua radical democratização.
Entre nós não poderá ser diferente.
Quem tem senso e sinceridade é forçado a reconhecer que o que tem salvo o Brasil é justamente o que costumamos chamar os erros dos governos contra a constituição.
Não fosse o bom senso que aqui e ali, uma ou outra vez reage contra o teoricismo de que vestimos um país como o nosso, que pede governo simples e forte – mesmo porque ele é alguma coisa mais que as duas ou três grandes cidades que o infelicitam e desorientam – não fosse esse bom senso conservador e condicionado ao nosso meio, a verdade é que o Brasil só existiria hoje em dia como expressão geográfica.
Ainda não houve governo, por mais ruim, que ousasse, por exemplo, proclamar o direito de separar o Rio Grande ou Mato Grosso da comunhão brasileira, e no entanto, tem sido esta a consequência lógica, e em altos brados confessada, das aspirações ultra-democráticas do republicanismo nacional.
É claro, pois, que toda corrente de ideias que se apresente como reformadora dos nossos costumes políticos, mas no sentido de diminuir ainda mais o prestígio da autoridade, entre nós, é corrente perniciosa, é mentira viva, vinda do caos revolucionário, ameaçadora da unidade nacional, tenha o nome que tiver e faça as promessas que entender.
O Brasil está numa fase tão delicada da sua formação social, que quase se pode dizer que – necessitando mais que outro qualquer país, de uma verdadeira polícia interna de costumes, isto é, de um Poder Político, o mais simplificado e o mais forte, o mais amparado pela força nas suas relações com os demais órgãos constitutivos da sua soberania – de pouca utilidade lhe será o respeito maior ou menor por fórmulas políticas de nenhuma eficiência sobre o nosso temperamento coletivo.
A questão da democracia, tal como a entendia Veuillot, esta é muito outra, e quase não depende de governo. Pelo contrário: os governos justos e capazes é que dependem da solução que se está a pedir, há séculos, para aquela magna, aquela única verdadeira questão, que a humanidade tem a resolver.
Gazeta de Notícias, 11 de Maio de 1927