Jackson de Figueiredo
Diante das incertezas desta hora da nossa vida política, tenho feito um rigoroso exame da minha consciência, pelo temor de ser uma vítima da minha própria vaidade, defendendo, como tenho defendido o governo do Sr. Arthur Bernardes, homem que só teve para comigo gestos de mesquinhez ou incompreensão, fosse ele próprio vítima de asquerosos intrigantes, ou lhe checasse ao seu espírito de mando, a atitude de quem, combatendo fiel e ardorosamente pela sua causa ‒ que era, a meu ver, a causa do país ‒ jamais lhe deu uma só prova de sabujice e amor da servidão.
Minha vaidade seria, no caso, a de parecer acima de injustiças e agravos pessoais, como homem que paga injustificadas malquerenças com atos de generosidades.
Enganar-se-ia, porém quem supusesse que as minhas crenças me tenham levado a imaginar-me santo ou digno, ao menos, de pretender tão elevada glória.
Pelo contrário: injustiças e agravos não os sofro sem indignação e sem cólera.
O que as minhas crenças conseguem, de fato, do temperamento em revolta, é o corretivo da meditação e da analise e, não raro, por consequência, a vitória da serenidade e do absoluto subjetivismo no julgamento dos que me são desafetos.
É este, pois, o meu caso com o Sr. Arthur Bernardes.
Não lhe devo, nem lhe dou uma só palavra de carinho ou de generosidade.
Estou convicto, absolutamente convicto, de que, até agora, nada tenho feito senão justiça, pura justiça, em relação ao seu papel na história do Brasil contemporâneo, e é por isso que , mais do que se supõe, não me agradaram certos elogios, muitos honrosos, não resta dúvida, para um poeta ou um profissional de martírio, mas não para um homem que nada mais tem pretendido, em toda a sua atividade jornalística, do que o direito a uma severa serenidade, não só em face dos acontecimentos políticos de seu país, mas também dos homens que mais influência tiveram ou tenham nesses acontecimentos.
Ora, o meu velho e admirado amigo Sr. Veiga Miranda teve, entre outras, no último número da sua bela revista “ O Comentário”, as seguintes palavras a meu respeito:
“Ao nosso ver, a bravura de Jackson de Figueiredo o levou a terçar armas puras em prol de uma causa em que ele via a ordem suprema por uma espécie de daltonismo. O bernadismo não merecia o paladino que teve”.
Agora, pergunto eu ao ilustre ex-ministro da Marinha: daltonismo por quê? Será mesmo um fato que o “bernardismo” não estivesse, no início da luta, confundido com a ordem suprema, a que toda nação civilizada deve aspirar?
Falemos calmamente:
Em relação à luta política que se travou em 1922, creio eu que o Sr. Veiga Miranda não negará nunca que nenhum juiz poderia apresentar tantos títulos de competência e de responsabilidade como o Sr. Epitácio Pessoa, de cujo governo fazia parte o meu ilustre amigo.
Pois bem: numa ordem de ação diferente, com armas bem mais poderosas do que as minhas, qual foi a atitude do Sr. Epitácio Pessoa?
Não foi ela idêntica, absolutamente idêntica a minha, quanto à sua finalidade moral ou simplesmente política?
Que me diz o Sr. Veiga Miranda? Teria, sido vítima do mesmo daltonismo o ilustre ex-chefe da Nação, o grande brasileiro, que ainda hoje é o orgulho e a mais límpida glória das gerações presentes?
Quando na plenitude do governo Bernardes, gregos e troianos, imbecilmente o atacavam, uns e outros porque ele não se aliara às violentas paixões de grupo ‒ disse mil vezes e não poucas escrevi, que o Sr. Epitácio Pessoa tivera o direito de fazer tudo o que fez, como chefe de Estado, no sentido de pacificar a sociedade que se confiara à sua prudência, à sua inteligência, ao seu patriotismo.
Na chamada questão do “tertius”, por exemplo, se nós, os que nos batíamos pelo direito estabelecido, tínhamos o dever de não ceder nunca, a ele, como Chefe de Estado, cabia, não só examinar a questão com toda a isenção de ânimo, mas expor, como expôs, aos mais responsáveis da corrente vitoriosa, o que poderia custar aquela vitória a paz do país.
E foi o que ele fez.
Mas, por isto mesmo que não vacilou ante aquele dever na sua consciência, ficou evidente que não se pôs ao lado do ‘bernardismo” por impulso de interesse pessoal ou paixão de momento.
Dado que os homens que personificavam a causa Bernardes, tinham a coragem cívica necessária para assumir tamanhas responsabilidades, e eram, portanto, dignos delas; dado, por outro lado, que aos métodos propriamente políticos, a facção contrária substituía os processos mais violentamente subversivos, o Sr. Epitácio não vacilou mais, não tergiversou, não cedeu uma linha sequer do seu papel de mantenedor da ordem e da unidade nacional.
Pois bem: eu nada fiz senão apoiar, em toda a sua extensão de patriotismo e de fé na ordem civil, a ação do Sr. Epitácio Pessoa.
Onde, pois, o meu daltonismo?
Que diz o Sr. Veiga Miranda? Teria eu dado provas de ter vista menos perturbada, se tivesse apoiado os que arrastaram as forças armadas ao sangrento espetáculo de Copacabana?
Veio depois o governo Bernardes.
Fôra o governo cuja instalação o Sr. Epitácio dera o seu apoio. Cessaram, por acaso, as tentativas de subversão e de revolta? Quem em ultima análise, representava a ordem civil? ‒ o governo do Sr. Bernardes ou os homens que despedaçaram a Força Pública do Estado de S. Paulo?
Ausente-se o Sr. Veiga Miranda, por um minuto que seja, das suas antipatias pessoais, e diga-me com franqueza: o Governo Federal tinha ou não tinha o direito de defender-se durante estes quatro anos?
E que fez mais que defender-se?
O Sr. Veiga Miranda não virá com certeza, subscrever os romances rocambolescos que por aí vão tentando criar uma sinistra legenda ao Sr. Bernardes.
O Sr. Veiga Miranda é um homem culto e sabe de ciência certa que em qualquer país do mundo civilizado, atentados revolucionários como os que assinalaram o governo Bernardes, teriam tido repressão dez vezes mais rude e mais violenta.
A confissão pública do Sr. Assis Chateaubriand a esse respeito, não pôde deixar de impressionar qualquer homem de boa fé, dado o rancor deste publicista contra o ex-presidente. Ora, a verdade é que o Sr. Chateaubriand não vacila em abonar a amenidade da repressão governamental, e isto quando a persistência de propósitos revolucionários seria capaz de exaltar ou perturbar a consciência de qualquer homem de governo.
Mas há ainda que alegar em favor da minha visão política:
O Sr. Washington Luis acaba de receber, por entre aplausos, o governo da República, das supostas sinistras mãos do Sr. Arthur Bernardes.
Até agora, o Sr. Washington Luis não deu uma prova sequer de repudiar a obra política do seu antecessor.
É mais um testemunho a favor do meu ponto de vista. E será pouco valioso? Creio que não.
Fique o Sr. Veiga Miranda, de uma vez por todos convencido, que sei fazer justiça aos revolucionários que “de armas na mão”, e não só com a insídia e a calúnia, ainda combatem contra a ordem de coisas estabelecida no Brasil.
Em primeiro lugar, devo dizer que o atual regime republicano ainda me é mais antipático que a qualquer dos que o combatem ‒ sem saber bem, esta é a verdade, na maioria dos casos, o que combatem e o que desejam.
Somente eu acho nos métodos propriamente políticos, para a realização de qualquer reforma social. Eis a diferença.
Mas não nego que admiro nos revolucionários, a dignidade humana, isto é, a coragem das suas opiniões, a persistência, a convicção, o entusiasmo.
E se assim é, falemos franco: não têm os homens que representaram os dois últimos governos, não têm os que representam o atual, não têm eles, pelos menos, o mesmo direito a igual amor, a igual entusiasmo, a igual persistência, em prol da causa que abraçaram?
Creia o meu querido Veiga Miranda: se os elementos conservadores do país não se mostrarem capazes, pelo menos, de resistir às forças anarquizantes que, por toda a parte, nos perturbam e degradam como nação, em face do mundo, a realidade é que estamos às vésperas de uma catástrofe nacional, do separatismo, ou de coisa pior ainda, como será, por exemplo, a bolchevização dos nossos grandes centros urbanos, grandes e ricos, mas, como todos sabemos, sem os mesmos recursos morais e de organização natural que, no entanto, não preservaram outras desgraças inomináveis.
Se ser daltônico, é persistir em ver desta maneira as últimas tristezas geradas no coração do Brasil, morrerei, estou certo, deste mal.
O que não impede, nem impedirá, também estou certo, que eu veja no escuro horizonte estrelas de esperança, astros promissores, esperanças de ordem, promessas de paz, ordem e paz, que jamais se implantarão, realmente, onde a luta não se anime do mais vivo espírito de dignidade e de coragem.
Gazeta de Notícias, 15 de dezembro de 1926