Jackson de Figueiredo
No desejo, não de discutir a sentença da Santa Sé, mas de informar-me seguramente do que a levou a ferir de morte a “Action Française”, sem desprezar os jornais, tenho procurado ler, sobretudo, o que se vai publicando em livros e opúsculos, convencido como estou de que eles serão, pelo menos, produto de mais demorada análise da situação e de mais sério conhecimento do assunto.
Mas, francamente, tenho saído desiludido de todas estas leituras.
Agora mesmo acabo de ler o opúsculo de Gonzague Truc, cujo título me serve de título a estas linhas, e não há, positivamente, como esconder a sua franqueza de argumentação.
Gonzague Truc é, sem duvida, o que se pode chamar um belo espírito. Sem ser católico, a sua obra de vulgarização do tomismo é, não só um testemunho de acentuada tendência para a alta meditação, mas uma prova mesmo da sua simpatia pela Igreja.
Entretanto, fica-se a indagar como pode um homem como Gonzague Truc mostrar-se espantado de que o Cardeal Andrieu acuse de ateísmo, de agnosticismo, de anticristianismo, de anticatolicismo, a obra de “Action”…
Porque, positivamente, a discussão não pode ser sobre esse terreno. Mais claro ainda: não pode haver com quem discutir a sério neste terreno.
Não creio que, de boa fé, pelo menos, seja possível negar esta ordem de exposição que, só por si, tudo esclarece:
A “Action” sempre se inspirou nos ensinamentos de Charles Maurras; este jamais negou o seu agnosticismo, o seu materialismo; agnosticismo e materialismo são tudo quanto possa haver de mais oposto ao cristianismo e não há catolicismo onde não houver cristianismo.
Dizer que uma condenação assim concebida só pode ser justa em relação ao “Chemin de Paradis” é negar a verdade do modo mais afrontoso. Toda a obra de Maurras é a obra de gênio de um agnóstico, do ponto de vista da filosofia geral, de um agnóstico deste ponto de vista, que, no entanto, como Augusto Comte e outros, crê na possibilidade de construir-se uma filosofia social. Maurras não foi original nem quando procurou a aliança da Igreja Católica para a consecução dos seus fins.
Já o seu mestre Augusto Comte também o tentara.
A singularidade de Maurras estava no seu profundo conhecimento da vida católica, do seu pensamento, da sua cultura, da sua sensibilidade, o que o transformou num dos mais sutis e dos mais fortes apologistas da Igreja, na sua atividade por assim dizer, temporal, como aliada, sempre mais experiente e mais sábia, de toda autoridade que quer ter duração.
Mas a base de fé, nunca Maurras a discutiu, nem jamais negou que excluía todo alicerce metafísico de sua construção doutrinária.
O próprio Gonzague Truc tem palavras como estas: “Certes, M. Charles Maurras n’exhale point en esprit un parfum chrétien et il arrive que son oeuvre manifeste á pégard du nouveau monde enfanté par le Golgotha des sentiments qui rappelent ceux des contemporains de Celse”.
Como, pois, após confessar uma tal impressão mostrar-se admirado, se não indignado, de que o Episcopado francês, e a Santa Sé, por fim, procurem evitar mais íntimos contatos da mocidade com um tal doutrinador?
Afirmar, como afirmo também, que se deve a Maurras o melhor da reação contra a democracia mentirosa, sanguinária e inumana, não é, de modo algum, poder, com justiça, desconhecer o direito que tem a Igreja de desconfiar dos resultados sociais de uma tão complexa liga de salutares verdades e erros funestíssimos, porque o próprio bom senso repele a ideia de poder salvar uma sociedade em ruína, o indivíduo que nem ao menos tenta salvar a sua própria alma, arruinada, digamos assim, nos seus fundamentos de fé e de esperança. E este era o caso de Maurras. Repito: a discussão não pode manter-se neste terreno. Quando Gonzague Truc a desloca para o domínio dos resultados sociais, já colhidos pela Igreja, através da “Action Française”, há sim, há que vencer uma certa perplexidade da parte de quem tenha seguido com carinho a ação de Maurras e seus companheiros no mundo contemporâneo. É incontestável, por exemplo, que muitos dos espíritos mais brilhantes e dos caracteres mais rijos, muitas das personalidades mais aptas a uma perfeita definição, foram arrastadas pela “ Action” ao respeito, e, não raro, ao amor da Igreja, à fé prática e edificante. Mas o que há a perguntar é se a Igreja se dirige a personalidades, a talentos, a caracteres de escol, ou a todos os homens, os mais elevados como os mais vulgares.
E ai é que está a questão.
A prova de que já são compreensivos os atos repressores da Igreja neste caso da “Action Française” já a tem fornecido, suficientíssima, a própria imprensa, a própria linguagem dos condenados.
Apreende-se, perfeitamente, que a Santa Sé, tão bem informada sempre, não precisou adivinhar o que escondiam aquelas aparências de respeito e de veneração.
O que tem sido publicado pela “Action” com relação à atitude da Igreja é de desiludir para sempre os homens de boa fé sobre essas perigosas alianças da verdade com erros, sejam eles quais forem, vistam eles a mais bela roupagem, se mascarem do modo mais atraente.
O caso da “Action” faz-me lembrar aquelas nobres palavras de D. Antonio de Macedo Costa na sua célebre entrevista com Pedro II, sobre a questão religiosa.
“Permita vossa majestade que eu faça uma comparação familiar: certa pessoa tocando noutra, ligeiramente, com a ponta de uma lanceta, saia da ferida pus infecto. A pessoa ferida queixa-se de que foi imprudência, que foi maldade que levou a outra a feri-la; o médico, chamado, diz com sizo: – Não quero saber com que intenção foi dado este golpe: mas o certo é que corre pus”.
“Aplico o símile”, concluiu o nosso grande Bispo. No caso da “Action” não é difícil a cada homem de boa fé, fazer o mesmo.
Gazeta de Notícias, 13 de abril de 1927.